Como vivem os idosos sem-teto, um grupo cada vez mais numeroso na cidade mais rica do País
LUIZA VILLAMÉA
Pai de 13 filhos, o aposentado Sebastião Dorismundo de Oliveira, 75 anos, mantém os mesmos cuidados pessoais que tinha na década de 40, quando ingressou na Guarda Civil de São Paulo, de polainas, luvas brancas e gestos elegantes. Todas as manhãs ele se barbeia, toma uma ducha quente e cuida de suas roupas em um centro de convivência. A face limpa do aposentado é o reflexo mais dramático de um problema crescente. Sebastião Dorismundo de Oliveira, um dos muitos velhos de rua da cidade mais rica do Brasil, é o retrato do descaso familiar, do desemprego e da falta de uma aposentadoria que lhe permita viver com dignidade. Ele integra um contingente que se tem ampliado a uma velocidade impressionante, dividindo praças e viadutos com os menores de rua. As diferença
s entre crianças e adultos, contudo, vão além da idade. Enquanto os menores convivem com diversas oportunidades de trocar a rua por um abrigo e a mendicância e a violência por um emprego, os velhos de rua já perderam as esperanças de retomar uma vida normal.
Sebastião, por exemplo, mora na rua há três anos. Nenhum dos 13 filhos o quer em casa. "Nunca combinei com a família", conta. "Tenho gênio forte." O dinheiro para a alimentação foi garantido com uma aposentadoria de R$ 112 mensais conseguida há apenas seis meses graças à ajuda de assistentes sociais. Não lhe sobra um mínimo para o aluguel de um quarto. Há sete meses sofreu um derrame, o que dificulta a fala, mas ele não aceita fazer uma neurocirurgia para amenizar o problema, apesar de ter conseguido vaga num hospital público. "Se mexerem na minha cabeça, posso ficar louco", especula. João Santos da Costa, 63 anos, tem barba e cabelos por fazer, dorme sob um viaduto na região central de São Paulo e, ao contrário de Sebastião, é o retrato mais conhecido deste mundo de velhos de rua. Ele não frequenta casas de convivência, onde teria oportunidade de lavar suas roupas, tomar banho, barbear-se e até participar de atividades em grupo. Argumenta que não pode abandonar a área, sob o risco de outra pessoa lhe roubar o posto de guardador de carros da região. "Ia ficar sem dinheiro para a cachaça", explica. Durante mais de dez anos, João foi cozinheiro em hotéis, o que lhe possibilitou a compra de uma casa em Fortaleza (CE), onde tem mulher e dois filhos. "Depois, me entreguei para a bebida", reconhece. O alcoolismo e as doenças mentais continuam sendo os maiores motivos para que adultos vivam na rua, mas já não são os únicos. Entre os 5.334 moradores de rua contabilizados pela Prefeitura de São Paulo, o desemprego e a falta de assistência familiar são novas causas a serem levadas em conta pelas entidades de assistência social
João Santos da Costa, 63 anos, tem barba e cabelos por fazer, dorme sob um viaduto na região central de São Paulo e, ao contrário de Sebastião, é o retrato mais conhecido deste mundo de velhos de rua. Ele não frequenta casas de convivência, onde teria oportunidade de lavar suas roupas, tomar banho, barbear-se e até participar de atividades em grupo. Argumenta que não pode abandonar a área, sob o risco de outra pessoa lhe roubar o posto de guardador de carros da região. "Ia ficar sem dinheiro para a cachaça", explica. Durante mais de dez anos, João foi cozinheiro em hotéis, o que lhe possibilitou a compra de uma casa em Fortaleza (CE), onde tem mulher e dois filhos. "Depois, me entreguei para a bebida", reconhece. O alcoolismo e as doenças mentais continuam sendo os maiores motivos para que adultos vivam na rua, mas já não são os únicos. Entre os 5.334 moradores de rua contabilizados pela Prefeitura de São Paulo, o desemprego e a falta de assistência familiar são novas causas a serem levadas em conta pelas entidades de assistência social. "De dois anos para cá, percebemos o crescimento de uma população diferenciada, formada por pessoas mais acabadas, com os cabelos grisalhos", diz Mabel Garcia, coordenadora do Centro de Convivência Porto Seguro, na zona norte, uma das 13 entidades que recebem subsídios da Prefeitura de São Paulo. "Decidimos então dar um atendimento especial ao grupo com mais de 50 anos." No centro de convivência, que funciona nos dias úteis, das 9h às 17h, eles têm prioridade na entrada. Lá, podem se cuidar, tomar um lanche por dia e chegam a participar de discussões em grupo. Numa delas, ocorrida após uma sessão do filme Conduzindo Miss Daisy - no qual a personagem da atriz Jessica Tandy acaba internada pelo filho em um asilo -, um grupo de 20 idosos mostrou sua preocupação com o futuro. "Só peço a Deus que nos leve lúcidos", resumiu o barbeiro aposentado Jérson de Souza, 63 anos. "Se ficarmos senis na rua, vão nos chutar que nem cachorro." Para ele, as vantagens da personagem do filme eram ter uma família e condições financeiras para bancar uma internação.
"A população idosa de rua vai aumentar ainda mais", afirma o demógrafo Paulo Murad Saad, que faz doutoramento em Terceira Idade na Universidade do Texas e foi um dos coordenadores da publicação O idoso na Grande São Paulo, da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade). "A população está envelhecendo rapidamente e as instituições não estão dando conta da demanda." De fato, o brasileiro está vivendo mais. Na virada do milênio, 7,2% da população terá mais de 60 anos. Nas duas décadas seguintes, estima-se que 32 milhões de pessoas estarão nessa faixa etária, o que corresponderá a 15% dos brasileiros. O emparelhamento com índices europeus de estimativa de vida tem, contudo, o lado perverso do abandono. "Antes, as crianças eram as mais vulneráveis a ficar na rua, pois a população era mais jovem", analisa Saad. "Daqui para a frente, mesmo que a quantidade de menores de rua diminua, o número de idosos aumentará." Pela quantidade - o levantamento da prefeitura aponta a existência de 466 menores nas ruas da cidade - e pelo fato de muitas vezes se unirem para cometer pequenos furtos e consumir crack, os meninos de rua são muito distintos de seus colegas idosos. Na rua, os mais velhos tendem a ficar sozinhos e raramente se envolvem em ocorrências policiais. "Mas não se pode tratá-los como um grupo homogêneo, pois entre eles há pessoas que já trabalharam e agora estão fora do mercado, há gente com graves problemas familiares e há também muitos casos de alco-olismo e doença mental", afirma o padre Júlio Lancelotti, do Vicariato dos Povos de Rua. Alguns, inclusive, parecem seguir uma sina andarilha. É o caso do pedreiro aposentado Mário de Souza, 77 anos, nascido em Piracicaba (SP). Apesar de ter na capital sua principal referência, Mário não consegue parar em nenhum lugar. Ele já perdeu a noção de quanto tempo vive ao léu. Só sabe que viaja, viaja e está sempre de volta à cidade. "Não pode ficar parado", costuma repetir. "É preciso procurar um lugar para ficar." Dois dias depois de chegar de Barretos, no interior paulista, ele estava em uma estação de trem procurando passagem para outra cidade. "Não pode ficar parado", repetia diante do guichê. Essa tendência à movimentação, associada à dificuldade em encontrar instituições que os aceite durante períodos de convalescência, são os principais problemas que o sanitarista Nivaldo Carneiro Jr. encontra ao tratar moradores de rua. Diretor do Centro de Saúde-Escola Barra Funda, na região central, Carneiro Jr. tem 57 sem-teto cadastrados no ambulatório. Dezesseis deles nem sequer forneceram dados relativos à idade. Dos 41 com data de nascimento conhecida, cinco têm mais de 60 anos, o patamar estabelecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para definir a terceira idade. "Na rua, o idoso sofre mais porque tem a saúde mais debilitada", afirma o médico. nitarista Nivaldo Carneiro Jr. encontra ao tratar moradores de rua. Diretor do Centro de Saúde-Escola Barra Funda, na região central, Carneiro Jr. tem 57 sem-teto cadastrados no ambulatório. Dezesseis deles nem sequer forneceram dados relativos à idade. Dos 41 com data de nascimento conhecida, cinco têm mais de 60 anos, o patamar estabelecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para definir a terceira idade. "Na rua, o idoso sofre mais porque tem a saúde mais debilitada", afirma o médico. Estar em boas condições físicas é um dos poucos trunfos de Santina Oliveira, 62 anos. Sem filhos e sem contato com a família, da cidade de Sorocaba, no inte-rior paulista, Santina ficou viúva em 1991, durante um assalto à casa de campo onde ela e o marido trabalhavam como caseiros, na Grande São Paulo. Na época, encontrou abrigo num albergue da capital e, pouco depois, começou a trabalhar na casa de uma senhora idosa, que vivia sozinha no Jardim Paulistano, um bairro nobre de São Paulo. Com a morte da patroa, em março, Santina se viu de novo na rua. Guarda seus pertences no quarto de uma amiga, também empregada doméstica, passa as noites em albergues e está procurando trabalho. "Sei fazer de tudo", esclarece. "Ainda vou bater na porta de alguém que esteja precisando de uma pessoa como eu." Enquanto isso não acontece, seguindo dicas de sem-teto com mais tempo de rua, Santina se alimenta graças a um roteiro gastronômico desconhecido da maioria dos paulistanos e que inclui o cardápio de pelo menos duas dezenas de instituições. Seu domingo, por exemplo, começa com um desjejum oferecido pela igreja evangélica coreana no Glicério, no Centro. Entre assistir ao culto e fazer fila, são quase duas horas de espera por um copo de café com leite e um pãozinho francês. É muito tempo para quem trabalha na cidade mais apressada do País. Mas é quase nada para aqueles que tiveram seus últimos anos de vida jogados na rua por uma sociedade que aliou a imprevidência oficial à desassistência pública.
Colaboração: ADEMIR DE SOUZA (Associação Fraternal Servos dos Pobres)
ademir.souza@uol.com.br
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